Leia e ouça: Cegos do Castelo
Por Andre Vieira
A visão sempre foi algo muito precioso ao ser humano. É com ela que nós descobrimos as cores e os sorrisos mais bonitos, os grandes campos floridos e a luz prateada do luar, a serra e o mar. É por meio da visão que sentimentos tão quentes e felizes se concretizam em uma mistura de luzes de sombras, claros e escuros, algo tão único e inexplicável.
Por Andre Vieira
A visão sempre foi algo muito precioso ao ser humano. É com ela que nós descobrimos as cores e os sorrisos mais bonitos, os grandes campos floridos e a luz prateada do luar, a serra e o mar. É por meio da visão que sentimentos tão quentes e felizes se concretizam em uma mistura de luzes de sombras, claros e escuros, algo tão único e inexplicável.
No entanto, olhar
apenas por uma fresta de luz ou um par de olhos inocentes nunca foi saudável.
Encontrar outras formas de olhar a mesma situação ou refletir sobre o visto e
vivenciado são, hoje, coisas fundamentais para se entender o que se passa nas
ruas e casas, nos apartamentos e palácios. Até onde se estende nossa visão?
A pergunta me
vem à mente enquanto sigo minha caminhada, em direção à Paulista, em uma
ensolarada tarde de abril. Logo após um almoço mal digerido terminado às
pressas, e de uma breve discussão sobre demissão de centenas de jornalistas, o
humor não é dos melhores, tampouco bom é o cenário que se podia imaginar da
manifestação que acontecia na Avenida.
Continuo dando alguns passos frente ao meu
destino sinuoso e incerto, e logo me vem à angústia: como eles irão me ver e
julgar? Será eu o repórter? O dito membro imparcial da sociedade, o apurador de
verdades, os olhos de quem não pode ou não consegue ver o que vemos? Ou seria
eu o vilão? O motivo daquele ato, o comunista, o vagabundo, o apoiador dos
corruptos e espalhador de mentiras? Seus olhos serão revestidos por lentes
cor-de-rosa ou por óculos escuros Rayban? Veriam com os próprios olhos, atentos
a todos os detalhes e minucias ali presenciadas, ou teriam uma visão cerrada e
bem delimitada segundo os grandes meios de comunicação e de seus amigos e
familiares? Eis a questão.
Chego à Avenida
e deparo-me com uma grande disparidade entre o que vejo e o que foi noticiado
pela televisão antes de minha partida ao ato. Vejo cartazes cheios de discursos
de ódio contra grupos sociais e raciais mais desfavorecidos historicamente,
odes à volta dos militares, odes ao xenofobismo e ao deboche público de pessoas
que, muitas vezes, desnecessário e infundado.
Meu desespero é
grande. O medo é avassalador, um golpe certeiro entre as costelas, daqueles que
o juiz já dá como encerada a luta e aponta o ganhador do campeonato mundial,
fico sem ar- vou à lona. Tenho medo. Medo de enxergar o que vejo. Medo de isso
se torne perpetuo. Mas qual o sentido
daquilo tudo? Nascemos para sermos fies máquinas de reprodução de informação?
Seriamos não uma engrenagem torta, velha e rota das máquinas das grandes mídias
produtoras de conteúdo? Teríamos alguma voz
ou qualquer tipo de representação fora dos grandes meios de comunicação?
Não faz sentido.
Não, não há
sentido para tanta cegueira, tanta penumbra, tanta escuridão pautada por gente
de tanto potencial e de tanta sabedoria. Se José Saramago, produtor do livro “Um ensaio
sobre a cegueira”, visse o que passa ali ficaria surpreso em ver, uma vez mais,
sua obra tomar vida fora das bibliotecas e rodas de leituras. Talvez o autor,
contente com seu trabalho, ficasse feliz com a expansão e o reconhecimento
incontestável de sua teoria literária, sorte de Saramago e o azar nosso, que
estaríamos presos a uma realidade onde há a cegueira total da visão.
A manifestação,
enfim, acaba. O ato que reuniu cerca de 100 mil pessoas, segundo o banco de
dados da Folha de São Paulo, resume bem um das minhas maiores preocupações
inicias: não é de interesse dos manifestantes ouvir a histórica inteira,
entender todo o contexto, ver a situação por diversos pontos de vista. Só há a
preocupação em ouvir o que lhes convém, falar meias palavras, meias verdades,
meias mentiras e estar satisfeito com o que lhe entregam como modelo de sociedade.
Talvez, o melhor remédio para essa cegueira funcional seja perder o medo de
enxergar, abrir as janelas de casa e olhar tanto a serra quanto o mar, sem medo
de se perder ou achar.
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