segunda-feira, 18 de maio de 2015

O medo de enxergar

  Leia e ouça: Cegos do Castelo

Por Andre Vieira

  A visão sempre foi algo muito precioso ao ser humano. É com ela que nós descobrimos as cores e os sorrisos mais bonitos, os grandes campos floridos e a luz prateada do luar, a serra e o mar. É por meio da visão que sentimentos tão quentes e felizes se concretizam em uma mistura de luzes de sombras, claros e escuros, algo tão único e inexplicável.

  No entanto, olhar apenas por uma fresta de luz ou um par de olhos inocentes nunca foi saudável. Encontrar outras formas de olhar a mesma situação ou refletir sobre o visto e vivenciado são, hoje, coisas fundamentais para se entender o que se passa nas ruas e casas, nos apartamentos e palácios. Até onde se estende nossa visão?   
                                            
  A pergunta me vem à mente enquanto sigo minha caminhada, em direção à Paulista, em uma ensolarada tarde de abril. Logo após um almoço mal digerido terminado às pressas, e de uma breve discussão sobre demissão de centenas de jornalistas, o humor não é dos melhores, tampouco bom é o cenário que se podia imaginar da manifestação que acontecia na Avenida.

   Continuo dando alguns passos frente ao meu destino sinuoso e incerto, e logo me vem à angústia: como eles irão me ver e julgar? Será eu o repórter? O dito membro imparcial da sociedade, o apurador de verdades, os olhos de quem não pode ou não consegue ver o que vemos? Ou seria eu o vilão? O motivo daquele ato, o comunista, o vagabundo, o apoiador dos corruptos e espalhador de mentiras? Seus olhos serão revestidos por lentes cor-de-rosa ou por óculos escuros Rayban? Veriam com os próprios olhos, atentos a todos os detalhes e minucias ali presenciadas, ou teriam uma visão cerrada e bem delimitada segundo os grandes meios de comunicação e de seus amigos e familiares? Eis a questão. 
                     
  Chego à Avenida e deparo-me com uma grande disparidade entre o que vejo e o que foi noticiado pela televisão antes de minha partida ao ato. Vejo cartazes cheios de discursos de ódio contra grupos sociais e raciais mais desfavorecidos historicamente, odes à volta dos militares, odes ao xenofobismo e ao deboche público de pessoas que, muitas vezes, desnecessário e infundado.

  Meu desespero é grande. O medo é avassalador, um golpe certeiro entre as costelas, daqueles que o juiz já dá como encerada a luta e aponta o ganhador do campeonato mundial, fico sem ar- vou à lona. Tenho medo. Medo de enxergar o que vejo. Medo de isso se torne perpetuo.  Mas qual o sentido daquilo tudo? Nascemos para sermos fies máquinas de reprodução de informação? Seriamos não uma engrenagem torta, velha e rota das máquinas das grandes mídias produtoras de conteúdo? Teríamos alguma voz ou qualquer tipo de representação fora dos grandes meios de comunicação?                                                                                                                                  
Não faz sentido.
  Não, não há sentido para tanta cegueira, tanta penumbra, tanta escuridão pautada por gente de tanto potencial e de tanta sabedoria.  Se José Saramago, produtor do livro “Um ensaio sobre a cegueira”, visse o que passa ali ficaria surpreso em ver, uma vez mais, sua obra tomar vida fora das bibliotecas e rodas de leituras. Talvez o autor, contente com seu trabalho, ficasse feliz com a expansão e o reconhecimento incontestável de sua teoria literária, sorte de Saramago e o azar nosso, que estaríamos presos a uma realidade onde há a cegueira total da visão. 
                          
  A manifestação, enfim, acaba. O ato que reuniu cerca de 100 mil pessoas, segundo o banco de dados da Folha de São Paulo, resume bem um das minhas maiores preocupações inicias: não é de interesse dos manifestantes ouvir a histórica inteira, entender todo o contexto, ver a situação por diversos pontos de vista. Só há a preocupação em ouvir o que lhes convém, falar meias palavras, meias verdades, meias mentiras e estar satisfeito com o que lhe entregam como modelo de sociedade. Talvez, o melhor remédio para essa cegueira funcional seja perder o medo de enxergar, abrir as janelas de casa e olhar tanto a serra quanto o mar, sem medo de se perder ou achar.



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