domingo, 22 de março de 2015

O tempo (não) cura

  Leia e ouça: Ai que saudade d'ocê
  
  Faltariam apenas oito dias para o seu aniversário. Seriam oitenta e dois anos. E já são nove de saudades. As pessoas costumam dizer palavras bonitas quando a gente perde alguém especial. Dizem que o tempo cura, e a saudade fica. Bem, nesses nove anos sem você, eu descobri que há coisas que o tempo não cura.
  O tempo não cura a vontade que eu ainda tenho de correr pro seu quarto depois da aula, e deitar na sua cama pra te ouvir tocar sua modas do interior. O tempo não cura as palavras  entaladas na garganta, palavras essas que eu não tive a oportunidade de dizer. O tempo não cura a saudade que eu sinto do seu cheirinho de loção pós-barba. O tempo não cura a falta que eu senti ao olhar um auditório de teatro lotado, no dia da minha formatura e não te ver ali. Algumas dores o tempo não cura.
  Eu não pude dividir com você o primeiro pedaço de bolo dos meus quinze anos. Eu não tive a alegria de ver o seus olhinhos brilhando quando passei no vestibular. Eu não te apresentei meu primeiro namorado, embora eu saiba, que o senhor diria que eu era muito bonita pra ele. E era. Queria que o senhor me visse hoje. Queria que o senhor pudesse ver como estão as meninas, e os seus meninos, como eles cresceram.
Tem tanta coisa que eu queria poder te contar...Desde que você se foi, eu me formei no colégio, e agora eu faço jornalismo. Eu queria poder contar pro senhor tudo que eu tenho aprendido com os meus professores, hoje eu sei de histórias que o senhor iria gostar de ouvir. E por falar em histórias, que saudades das suas...

 Desde aquela tarde que o senhor chorou pela última vez, a gente já passou por muita coisa aqui na Terra. Algumas fases difíceis, confesso, mas acho que no fim das contas o senhor ficaria orgulhoso da família que começou.
  O tempo passou depressa, e levou de mim algumas lembranças. Me envergonho em dizer que não lembro com tanta clareza de todos os nossos momentos juntos. Ás vezes são como flashes embaçados que se misturam com outras memórias, sabe? Tomara que o senhor possa me perdoar por isso.
  É engraçado que eu só tenha conseguido falar sobre isso agora, depois de tantos anos, de tantos aniversários. A verdade, que eu sempre escondi de todos, é que eu sinto a sua falta todos os dias. Sinto falta do seu sorriso aberto na porta da escola na hora do almoço, me esperando, todo aprumado e charmoso; sinto falta das broncas porque eu andava descalça pela casa - olho pros meus pés, e onde estão os chinelos? Percebo, com um meio sorriso, que o senhor brigaria comigo agora. - sinto falta das suas manias estranhas, como quando molhava o pãozinho no café com leite...
  Ah vovô, a saudade que eu sinto é grande, e aperta. E o tempo não cura a saudade. Sei que infelizmente o senhor não vai poder ler isso aqui, e que mais tarde serão linhas perdidas recheadas de saudades. Mas eu também sei, que o senhor sabe tudo o que eu sentia e tudo que eu ainda sinto. O senhor sabe que eu gostaria de ter estado lá naquele último dia. O senhor sabe que eu gostaria de ter me despedido melhor. E eu sei que mesmo longe, o senhor tá sempre por aqui.Eu espero poder me redimir, e quem sabe fazer pela vovó tudo aquilo que não fiz quando tive tempo com o senhor.
  Eu só queria num dia desses, talvez num sonho, te encontrar pra te agradecer. Porque eu não te disse obrigada pelos inúmeros doces comprados na padaria, pelos beijos de boa noite ou pelas tardes que passamos juntos assistindo o jornal na televisão, enquanto guadávamos o silêncio um do outro.
 Eu não te agradeci por tudo que me ensinou, pelo exemplo que foi. Eu não te agradeci pelo amor que me deu, sem pedir devolução. Mas hoje, vovô, logo hoje que a falta que você me faz resolveu apertar, e transbordar em letras arranjadas, em palavras combinadas que parecem insuficientes, hoje o senhor me ensinou a lição mais bonita, mesmo não mais presente. A lição de que saudade é pra ser sentida, me ensinou que a saudade é o que fica de quem não pôde ficar.
 

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