terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Ao meu, Seu Antônio.

  Leia e ouça: Adagio after Marcello

  Hoje tinha tudo pra ser o dia da ressaca. É, eu sei que ainda é terça-feira, sei que a segunda mal passou, e ressaca mesmo é domingueira. Sei que os últimos meses do ano dão mesmo uma moleza, um pesar, um desassossego; e hoje tinha tudo pra ser exatamente assim, mas não foi.
  Li em algum lugar que nenhum dia é em vão, e hoje - depois de um dia arrastado e horas de uma ansiedade louca, querendo mais do que nunca as merecidas férias - recebi uma recompensa que valeu mais do que finalmente deitar na minha cama, como tanto desejei desde que deixei as cobertas de manhã.
  Dentro do ônibus que me leva todos os dias de volta pra casa, tantas pessoas querendo o mesmo que eu, no meio delas alguém com quatro vezes mais idade mas olhos tão jovens. Um homem de cabelos grisalhos, suéter azul, e uma bolsa de couro surrado. Segurava a mão de um garoto com metade da minha idade, que fazia perguntas sem parar um instante sequer. As outras pessoas talvez não tenham reparado, pela pressa da vida urbana ou seja lá porque. Eu assisti naqueles quarenta minutos de trânsito um exemplo.
  O senhor, um homem distinto como diria minha vózinha, fingiu se sentir ofendido quando levantei para que sentasse,dizendo: " De jeito nenhum, mulher nenhuma levanta pra eu sentar". Insisti, e ouvi novamente um "Não, obrigado" com um sorriso no rosto, tentei ceder meu lugar então ao netinho que imitando a educação do avô, negou com a cabeça, e me perguntou o nome do livro que eu estava lendo. Sorri instantaneamente, ao perceber um remoto interesse pela leitura de uma criança que vive num mundo completamente exposto a tecnologia.
  Seu Antônio - nome que dei a ele por conta própria, porque muito distraída acabei esquecendo de perguntar - certamente percebeu minha cara de cansada, de quem não dorme direito há dias, e me disse com uma doçura sem igual: " Menina, trabalhou hoje né? Pois agora relaxe, aproveite o natal pra descansar". Engatei uma conversa sem banalidades com aquele homem, sem perguntar sobre o tempo, sem falar da chuva, sem reclamar da vida. E me senti tão agradecida por mesmo sendo um estranho, ser tão preocupado e tão simpático com uma garota sem graça e sem sal da cidade insana.
 Costumo falar sobre o amor por aqui, e Seu Antônio me ensinou mais uma forma de amar. Talvez a mais verdadeira e mais plena, a de amar um estranho, dispensar um pouco de carinho com  uma pessoa qualquer que passa pela rua, alguém que nunca mais verá.Para ele pode ter sido apenas mais uma conversa de ônibus, com uma garota que como ele mesmo diz " tem tanta vida pra viver" mas para mim, esse gesto simples de reconhecer a existência do outro ao nosso redor, valeu o dia, a semana, o mês, o ano.
  Continuei meu caminho carregando o sorriso daquele homem no peito, me lembrando da curiosidade daquela criança que estava com ele. O paradoxo do velho e do novo, do ontem e do hoje presente ali. Agradeço ao senhor, que pode ser Seu Antônio ou Seu João, Seu Osvaldo, Seu Raimundo, e que mesmo sem nome deixou sua marca.

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